"O homem é o pior e o maior inimigo de si mesmo"
Olhou na direção do muro cinzento protegido por uma longa fileira de arame farpado. Caía uma chuva fina e fazia muito frio. Seu estomago resmungava exigindo atenção. Já se haviam passado semanas desde a sua última refeição. Virou-se e percebeu que estava sendo vigiado. Do alto de sua guarita uma metralhadora estava apontada em sua direção. Podia ver a brasa nervosa de um cigarro que piscava sinalizando do perigo que o espreitava.
Caminhou lentamente sentindo aquela água gelada escorrendo pelos trapos encharcados que vestia. Conforme andava a arma se movia seguindo os seus passos. A lama grudava em seus sapatos entrando pelos buracos nas solas. Enquanto caminhava sentia o seu próprio fedor. Um cheiro de suor azedo subia até as suas narinas. Tremia de frio.
Seus pensamentos criaram asas e por alguns minutos se viu fora daquele inferno. Cláudia estava sentada com as pernas cruzadas deixando suas coxas quase que totalmente expostas não fosse o vestido florido que lhe enfeitava o corpo. Ela sorria e no rádio o locutor anunciava a próxima atração musical depois da propaganda de uma marca de sabão em pó. Na mesa uma garrafa de vinho pela metade, queijo, pão e salame. Pegou o copo que estava a sua frente e levou-o até os lábios saboreando vagarosamente o seu conteúdo. O que nós vamos fazer hoje? Perguntou a mulher que passava as mãos pelos longos cabelos negros prendendo uma tiara sobre eles.
Com os olhos precorreu demoradamente o corpo da mulher. A pele morena, os seios fartos querendo saltar pelo decote, o perfume que dela se espalhava pelo ambiente e os lábios vermelhos que tanto gostava de beijar. O corpo torneado cheio de frescor e o prazer que ela lhe proporcionava das mais variadas maneiras o faziam acreditar que estava no paraíso. Que nada nem ninguém poderia interferir em seu mundo particular e acabar com aquela felicidade que parecia durar para sempre.
De repente latidos e sirenes trouxeram-no de volta ao pesadelo em que se encontrava. Homens corriam em todas as direções. Do lado de fora caminhões militares chagavam trazendo mais prisioneiros para aquele campo de concentração. Mexa-se seu merda! Gritou um dos guardas batendo-lhe violentamente com a coronha da arma em suas costas.
O portão foi se abrindo e aquele triste comboio começou a entrar. Perfilados, os prisioneiros acompanhavam toda a movimentação em silêncio. As carrocerias dos caminhões foram abertas jogando para fora suas cargas humanas fedorentas e amedrontadas. Homens de todas as idades iam sendo despejados naquela lama, alguns urinavam e defecavam enquanto sofriam agressões de todos os tipos dos guardas que os xingavam e riam de prazer.
Ao seu lado um velhote de cabeça raspada esquelético que mal se agüentava em pé parecia chorar. Todos eles estavam em péssimo estado. A dureza do trabalho diário, a falta de comida e a violência dos guardas não poupavam ninguém. Não há mal que dure para sempre - falou o velho em voz baixa desmaiando em seguida. Sentiu vontade de se abaixar e ajudar aquele pobre homem, mas lhe faltou coragem. A chuva fina não parava de cair e o velhote moribundo era arrastado dali em direção a uma enorme cova coletiva que os próprios prisioneiros foram obrigados a cavar no dia anterior.
Depois de todos os caminhões terem descarregado suas cargas seguiram ordenadamente para fora do campo. Dos alto-falantes ordens eram dadas. Os cães latiam. A mulher e a felicidade não existiam mais. Agora era apenas um número perdido numa multidão de outros números. Será que havia chegado o momento de fazer as pazes com Deus?
Em seguida vieram outros guardas apontando suas armas para os prisioneiros que estavam a sua frente e começaram a disparar. O barulho dos tiros ecoava pela tarde enquanto os corpos atingidos iam se amontoando numa poça de sangue, água suja, urina, fezes e lama.
Lembrou-se dos passeios com o pai, das broncas da mãe e das birras de suas irmãs mais novas. As aulas de história que tanto gostava e a primeira vez que saiu com uma mulher e assim foi caindo para trás sentindo na boca um gosto de sangue, da vida que ia indo embora.
Logo os disparos cessaram. A chuva fina não parava de cair. Cães continuavam latindo seguros por guardas que em silêncio observavam aquele amontoado de corpos de onde saíam gemidos de dor e de desespero.
Alguns soldados sacaram das suas pistolas e se dirigiram na direção dos corpos caídos disparando naqueles "números" que gemiam ou ainda se mexiam.
Na manhã seguinte outro comboio militar chegou trazendo novos prisioneiros. As sirenes tocavam e os cães voltaram a latir enquanto as carrocerias iam sendo abertas...